A percepção do “agora” é uma ilusão e o que o corpo te informa já passou, foi vivido, significado e percebido. O que você sabe sobre a presença?
Em minhas memórias de bailarino a palavra “presença“ constantemente me aparece, fosse em minha própria profissão de artista, ou como plateia. Era comum ouvirmos coisas do tipo: “Fulano tem uma presença, né!”. Sim, fulano tinha, siclano não tinha e eu – assim como tanta gente, esteva lá à procura dela. Tudo parecia me levar a crer que a presença era uma espécie de estado sobrehumano, uma dádiva ou, ainda, uma substância não natural que poderíamos acessar a partir do corpo, bem à moda dualista cartesiana. Era algo para poucos iluminados que poderiam ou não se conectar à ela.
A presença era algo que sabíamos que existia, que podíamos perceber quando estava lá (fosse em nós ou no outro), mas que não estava circunscrita no aprendizado da técnica, não tinha uma metodologia de busca, tampouco poderia ser de alguma forma medida. Era percebida nos corpos subjetivos e, por isso, incapaz da quantificação objetiva. Algumas pessoas diziam que estava ligada ao olhar, outras à respiração e outros eram mais romanticas, isto é, a presença seria algo que se tem ou não tem e jamais poderia ser ensinada ou reduzida a um apanhado de orientações.
Talvez você possa se perguntar o porquê dessa história em um texto sobre a presença. Respire, eu chegarei lá.
Chegando no teatro tivemos aproximadamente meia hora para nos preparmos e nos dirigirmos ao palco. Não havia tido ensaio e dançaríamos a partir da confiança que existia em nós. A cortina fechou e com as luzes apagadas nos colocamos no centro da cena, a cortina se abriu e um mar de gente apareceu – ao menos na imaginação, pois não havia luz o suficiente para enxergar além de nosso espaço pessoal. Naquele momento eu fui tomado por um estado de completude que só me informava o propósito de estar ali – à época eu era um jovem bailarino e minha vida era balizada em grande parte pela realização em cena. O “estado“ me conduziu do início ao fim, e só se interrompeu quando as luzes se apagaram e agradecemos. A presença, que parecia ter me visitado, já tinha ido embora.
Quando me refiro a “estado” quero dizer sobre um conjunto de respotas no âmbito da nossa fisiologia que nos convidam à uma experiência subjetiva ligada as tais respostas. Os estados corporais são expressões não lineares, não categóricas e com poucas bordas – mas que se alinham à nossa experiência mental para a formação do conhecimento que fazemos sobre nós e o mundo durante as experiências vividas. Esses estados são recorrentemente relatados quando o assunto é a presença.
Quando fui tomado por aquele estado no palco – nomeado por mim por “presença”, não acho que estava presente no sentido do tempo, ao contrário, estava em uma espécie de relação com o tempo não exata, não cronológica, mas sim, perceptual. O que me leva ao conceito de presença como “presente percebido1”, uma estrutura de informação complexa com base em nossa percepção e que nada tem a ver com o agora, mas com a maneira como nós marcamos no tempo a significação da vida vivida.
O presente percebido é um termo da cognição que diz respeito à uma expressão da memória de trabalho que armazena uma quantidade razoável de informações ao longo de aproximadamente 100 milissegundos (um décimo de segundo). É uma área de retenção da experiência que nos guia no mundo, sem que a gente tenha que necesseriamente e, temporalmente, consciente dela. Pois a presença não é em si a consciência, embora conscientemete possamos tornar percebida a presença.
Quando as luzes se acenderam eu eu fui captado pelo “estado” eu não estava no agora do tempo, mas no agora da percepção – um agora que oscila para frente e para trás, que é guiado pelos desejos e imagens e que utiliza da informação disponível em uma escala ínfima do tempo para se conectar as ações no mundo, como me refiro ao movimento. Esse estado, é um ponto ao infinito no presente, mas que se perde no momento em que tentamos alcançá-lo, é inalçável no tempo, mas está lá pronto para se mostrar no corpo de quem vive.
De lá para cá muita coisa mudou, eu não estou mais nos palcos, mas ainda me interesso pela presença. Esse interesse pode ser, talvez, de conhecê-la de maneira mais próxima. Para conhecer algo é preciso significar esse algo em uma atitude na vida, além de perceber, é preciso compreender, lembrar e responder a ele. A presença que busco hoje é aquela ainda inalcançável, mas que em cada pessoa pode ser conhecida, seja mediada pelas minhas palavras ou por outras que sejam ditas ou imaginadas.
O agora é uma ilusão pois no momento em que é nomeado já não existe mais. Como toda ilusão é uma percepção sem objeto, tal qual o delírio. A presença, por sua vez, tem sim o seu objeto: o corpo de quem a vive.
Espero que você já tenha se sentido em presença algum dia, talvez você não se lembre, ou talvez você não tenha nomeado dessa maneira. De qualquer forma, ela, a presença, não é de uma outra substância que não a sua, não diz respeito a algo que é sobrehumano ou de uma outra subtância. A presença é feita de nós, por nós, via sensação e busca de significação. É um instante ao infinito no presente que dança no tempo para alcançar significado.
Obrigado pelo seu tempo e movimento.
Deixem mover…
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White, P.A. The perceived present: What is it, and what is it there for?. Psychon Bull Rev 27, 583–601 (2020).