Educação Somática neurociência

Porque você deveria bocejar mais na aula de balé

Não me lembro muito bem ao certo como aprendi isso, mas logo em minhas primeiras aulas de balé me disseram que eu jamais poderia bocejar na aula e, se o fizesse, deveria fazê-lo às escondidas. Anos depois, em uma aula de improvisação, os primeiros 40 minutos de aula eram orientados pela professora para que deixássemos o bocejo evocar o movimento, algumas horas isso era mais voluntário e, em outras, era espontâneo.

Neste trabalho que iremos observar, o brasileiro Luiz Fernando Bertolucci, traz ao contexto dos estudos sobre o corpo o ato de bocejar e espreguiçar como elementos vinculados à própria saúde do movimento e, em sua ausência, possíveis sinais de patologias.

O trabalho publicado no Journal of Bodywork and Movement Therapies em 2011 intitula-se “Pandiculation: Nature’s way of maintaining the functional integrity of the myofascial system”. Mergulhando no estudo de Bertolucci, iremos descobrir como o espreguiçar e o bocejar poderiam estar muito mais presentes para nossa saúde do corpo e movimento.

Espreguice seu corpo e vamos ao texto

Alguns conceitos são importantes nesse trabalho, iniciaremos por eles.

Primeiro, bocejar e espreguiçar podem ocorrer de forma independente no indivíduo, contudo, quando ocorrem em simultâneo observamos o que é intitulado como stretch-yawning syndrome (SYS). Aqui o uso da palavra síndrome tem mais o sentido de conjunto de sinais do que uma patologia em si e para que o texto seja mais acessível iremos tratar o termo em inglês a partir dos verbos espreguiçar e bocejar, abdicando do rigor da escrita original.

Uma das questões relevantes do trabalho é a observação do papel do espreguiçamento no desenvolvimento e manutenção das funções motoras, isso à nível celular e molecular e, ainda, macroscopicamente, agindo sobre os sistemas de fáscias musculares. Esse envolvimento é observado tanto em humanos, quanto em outros mamíferos.

O espreguiçamento e o bocejar têm sido associados com a manutenção de nossa capacidade de responder a estímulos do ambiente, nos mantendo em um certo estado de prontidão. Essa proposta reside sobretudo na relação funcional de regiões do sistema nervoso central associadas ao espreguiçamento e do bocejar. Tais regiões dão conta de comportamentos primitivos como fome, sede e ciclos do sono.

Saúde e bem-estar

Não é muito distante perceber que o ato de espreguiçar e bocejar possui uma íntima ligação com o bem estar e uma sensação de prazer. Resta saber que explicações são possíveis para essa percepção e qual o papel que esses comportamentos ocupam em nossa história evolutiva. Ademais, se estão erroneamente sendo tolhidos de nossa rotina de movimento.

Algumas aulas de educação somática e dança iniciam seus processos com um espreguiçar, alguns professores chamam esse momento de “chegada” ou “despertar”. De fora os rótulos adotados para esse momento, é um ponto da aula em que o corpo se prepara para um movimento orientado. Nesse momento o corpo vem (em grande parte) de um período de imobilização (no carro, no ônibus). Esse período também antecede o espreguiçar matinal, afinal, o corpo desperta de um período de sono em que que inúmeros processos de manutenção ocorrem com  o movimento global em repouso.

A proposta então é que o espreguiçar seria uma resposta do próprio corpo a longos períodos de imobilidade. Isso para que seja possível o retorno ao movimento de forma funcional e com os jogos articulares preparados. 

Além disso, uma série de processos celulares e moleculares estariam também envolvidos na presença desse comportamento, levando a entender o espreguiçamento como um comportamento ligado ao restabelecimento de seu estado homeostático, em equilíbrio. Esse mecanismo de retorno ao equilíbrio estaria envolto sobretudo a processos autônomos, pedidos pelo próprio corpo. É possível dizer isso, pois pacientes com paralisias em decorrência de acidentes vasculares podem abrir a boca quando bocejam, mesmo não conseguindo abri-la de forma voluntária.

Importante ressaltar a resposta involuntária (autônoma) envolvida nesse processo. O próprio trabalho descrito por Bertolucci (veja toque de tensegridade) estabelece um link direto do que é observado no comportamento involuntário de espreguiçar o corpo e que não é observado quando o espreguiçamos de forma voluntária, por exemplo, alongando. Claro que não desqualifico aqui a intenção de espreguiçar, pelo alongamento, mas chamo a atenção para o movimento que é pedido pelo corpo e que, por algum motivo, não está acontecendo.

O estudo traz, inclusive, o fato das asanas do Yoga serem derivadas de movimentos autônomos de sábios sob meditação profunda, além dos movimentos observados em animais.

O deixamover tem muito a ver com essa história. Atentar aos pedidos do corpo

Nesse ponto temos muito o que aprender com os animais, pois, por lá não existem aulas de alongamento e a importância da criação de espaços para a manutenção da musculatura esquelética também é requerida. E o que eles fazem?

Entre outros movimentos, espreguiçam e bocejam.

Além deste, trabalhos anteriores sobre o tema vislumbram o possível uso terapêutico da estimulação do espreguiçar e do bocejar tendo em vista suas correspondências com o equilíbrio fisiológico do corpo. Como Bertolucci propõe nesse estudo, os comportamentos de espreguiçamento remoldam estruturas celulares mínimas sinalizando processos moleculares que desencadeiam uma restauração da organização músculo-esquelética funcional.

Por que então inibir esse comportamento?

Inibir o espreguiçar e o bocejar rompe com a capacidade de ação sobre a homeostase. Com isso, tal inibição poderia estar ligado com a incidência de doenças músculo-esqueléticas.

Retome seu bocejo na aula de balé

Agora retomo  minha recordação inicial e a discussão do porquê você deveria bocejar mais na aula de balé. Chegando até aqui ele deveria ser então recomendado. Aliás, rompendo os espaços da sala de dança e levando esse comportamento além dela.

Atendendo aos pedidos do corpo por espaço interno.

Tendo isso em vista, que possamos então investir na percepção de nossos comportamentos autônomos, sua presença e ausência. Ainda, rompendo recomendações antigas que se alinham em noções de etiqueta e hierarquia e nos afastam do que faz bem ao corpo, ao movimento, à vida.

#deixamover

 

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Referências:

Bertolucci, L. F. (2011). Pandiculation: Nature’s way of maintaining the functional integrity of the myofascial system? Journal of Bodywork and Movement Therapies, 15(3), 268–280. doi:10.1016/j.jbmt.2010.12.006

 

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